08/04/20

Gavetas da memória

Há muito que a sua figura se tinha apagado numa das gavetas da memória. Naquele dia, sem nada que o fizesse prever, deu de chofre com ele, à entrada do supermercado, saco de compras na mão.
Estacou de repente. O coração deu-lhe um salto dentro do peito. Seria mesmo ele?
Tinha as marcas do tempo, como ela, mas conservava ainda aquele ar enigmático que fora sempre o que mais a cativara.
Ficou expectante. Falo, não falo?
Procurou algo no seu rosto que indiciasse que a reconhecera também. Mas nada viu. Naquele momento que durou uma vida, abriu-se a gaveta do tempo soltou-se a memória e viajou, como se tivesse sido ontem que tudo acontecera.
Eram adultos jovens, colegas da mesma escola mas de turmas diferentes. Nunca lhe soube o nome, nunca lhe soube a idade, nunca lhe conheceu a morada, não porque não pudesse, mas porque nunca tinha querido, para que permanecesse aquele ar enigmático à sua volta, de que tanto gostava e a deixava cativa.
O autocarro que os levava a casa era o mesmo. Gostava de se sentar perto onde ficava a apreciar o seu perfil e desenhos. Sim eram os desenhos o que mais lhe despertava o interesse e espicaçava a imaginação.
Mal se sentava logo abria uma pasta com folhas A4 e preenchia o branco com riscos e mais riscos pretos criando figuras que eram mais da mitologia do que da realidade e a fascinavam.
Cumprimentavam-se com um sorriso e um aceno de cabeça. Ela nunca soube se ele gostava de ter uma admiradora silenciosa. Talvez sim, pelo sorriso com que a cumprimentava, como se aqueles momentos também lhe fossem gratos.
Resolveu não dizer nada. Afinal ela era apenas uma admiradora silenciosa da sua arte e já tinham passado vidas.

5 comentários:

Jaime Portela disse...

Há coisas nas nossas gavetas da memória que por vezes saltam cá para fora, ou antes, para o consciente.
Uma bela história, platónica e frequente na adolescência.
Também gostei de voltar, deixámos de nos ver há meses... ou anos, nem sei. Mas a memória não se perde com facilidade.
Querida amiga Teresa, tem um bom fim de semana e uma Páscoa Feliz (dentro do possível).
Beijo.

Manuel Veiga disse...

cultivar as boas memórias e ousar o presente.
gostei de te saber de regresso aos blogs.

beijo

Graça Pires disse...

A memória. O regresso a um tempo que passou. Recordar os pormenores de uma vivência tão delicada, tão silenciosa. Lindo, Teresa!
Uma boa semana.
Um beijo.

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...


há rostos, há memórias que nos ficam para sempre.

gostei muito de ler.

beijinhos

:)

Parapeito disse...

gostei da tua "estória"
Fica no ar a melancolia .
São boas as recordações que não machucam.
Brisas doces **