12/10/11

Faz de conta...

Ali estava ela.

Perdia-se no tempo dos tempos a sua idade, mas ela ali estava serena, olhando tranquilamente o que à sua volta se passava. Tinha sobrevivido a ventos e calmarias, ouvira dia a dia o rugir da água precipitando-se parede abaixo, assim como o suave e doce gotejar em longos estios, onde outrora jorrando furiosa, ficava agora um pequeno e débil fio, quase não conseguindo molhar as ervas a seus pés, no pequeno lago.
Gostava de observar os passaritos que alegremente vinham pousar nos ramos mais altos das árvores, suas vizinhas enchendo o ar de chilreios e cantos diversos e as pessoas que saciavam o corpo cansado na calmaria das águas frescas do lago, indiferentes à sua presença.
Para os humanos, ela era apenas uma espécie de cadeira ali à mão, onde se podiam sentar, ou um simples cabide onde podiam pendurar as roupas enquanto se banhavam no lago.
O que eles não sabiam, porque lhes faltava sensibilidade para isso, talvez (pensava a pedra) era que ela não era uma pedra vulgar.
Sobressaindo destes humanos havia um, que gostava de ficar ali sentado a seus pés falando com ela.
Já tinham tido longas conversas e tecido algumas teorias sobre o comportamento humano e o porquê das coisas.
Naquele dia, já o Verão se despedia e a água caía mais lenta, em sossego convidando à conversa, apareceu, desceu as escadas e sentou-se a seu lado mansamente, como era seu apanágio começando a falar.
- Olá pedra, chamo-te pedra, mas um dia destes, ainda te vou dar um nome diferente disse, como se falasse mais para si que para ela. Tenho andado a pensar nas manifestações que se fazem um pouco por todo o mundo e que aparentemente nada mudam. Parece até que elas são permitidas para isso mesmo, não surtirem qualquer efeito. O povo explode, faz uma festa, a polícia acorre, bate a torto e a direito, e depois tudo cessa e tudo continua na mesma, em alguns casos talvez pior.
Basta ver o que se passa neste nosso tão belo, mas tão mal amado Portugal. O povo veio à rua e olha o que deu - passos perdidos com ar de achados, cenas carnavalescas diárias, um jogo de esconde-esconde onde afinal não se esconde nada, as portas passaram a ter honras de estado e ficam em bicos de pés para parecerem maiores, e por aí fora que não te quero cansar com estes meus pensamentos. Estou apenas à espera que as janelas tenham as mesmas honras e se abram por onde saiam os pássaros livremente.
- Olha amiga, sabes o que te digo? As manifestações são como os rios em tempos de enxurrada. Soltam-se as águas em alvoroço até que a chuva pare e o rio volte ao seu nível mais baixo ficando em alguns casos um pequeno regato.
Observa o que se passa nas barragens, (que os humanos tanto gostam de construir usando o desenvolvimento como mote) esquecendo quanto sacrificam a natureza.
Quando chove muito, quando o caudal engrossa tanto que ficam em risco os alicerces da barragem abrem-se as comportas, por onde jorram as águas em fúria sacrificando a albufeira, mas sabendo que os alicerces ficam intactos.
Assim é com as manifestações.
Calaram-se ambos, humano e pedra ficando cada um entregue aos seus pensamentos.
Entretanto, o sol tinha declinado e uma capa de penumbra ia cobrindo o local. Era o sinal para se despedirem até outro momento...