05/05/24

A Manta de Farrapos

 

A hora de dormir era a sua preferida. Já sabia que a avó lhe daria a mão, a acompanhava à caminha, aconchegava a roupa e contava uma das suas histórias.

- Avó conta uma história para chamar o soninho.

- Que te hei-de contar hoje, minha netinha?

- Hoje pode ser a história daquela manta feita de tecido e que é linda, mas pesada, para me tapar e por isso está a embelezar o chão e a aquecer os meus pezinhos, quando ando descalça, como gosto. Um dia disseste que me contarias.

A avó, pessoa nova ainda, talvez entre 60 e 70 primaveras, olhou aquele pequeno ser, afagou-lhe os cabelos aloirados, admirando o seu olhar vivo e brilhante, na perspectiva de uma história, que já se tinha tornado quase num ritual diário.

Pensou um pouco e começou:

- Naquele tempo, em que eram feitas estas mantas, chamadas mantas de trapos, as pessoas de um modo geral eram muito pobres, não tinham dinheiro para comprar coisas melhores, e então aproveitavam os chamados farrapos, que poderiam ser pedaços de blusa que já se tinham rompido e não dava para vestir, lençóis que já não podiam ir para a cama por terem muito uso, panos que serviam para os mais diversos fins, enfim, uma infinidade de coisas, já sem préstimo e só serviam para farrapos.

Iam-se juntando num cesto, ou caixa, já que não havia plásticos, sacos ou outros recipientes, e depois quando já havia a quantidade que a mãe achava suficiente, sentávamo-nos à porta, nas tardes de Verão, ou à lareira, nos dias frios de Inverno, cortávamos cada farrapinho, com a tesoura, em tiras mais ou menos com 2 ou 3 centímetros de largura, emendávamos umas nas outras e no final de tudo feito enrolavam-se então, formando novelos, grandes demais, para as minhas mãos pequenas. Na altura eu era pouco mais velha do que tu és hoje.

- Ó vó e já fazias trabalhos?

- Sim, querida. Naquele tempo começávamos a cumprir tarefas para ajudar os nossos pais, ou a ajudar a mãe a tratar dos manos mais novos, porque tínhamos de participar todos, nas tarefas que havia para fazer e eram muitas.

-Mas eras criança, como eu.

- Pois era, mas comecei a trabalhar muito cedo. Um dia vou contar-te a história.

Agora vamos lá ao final da manta de retalhos, ou trapos, como eram chamadas.

Feitos esses novelos que já mencionei, a mãe esperava a vinda de um senhor, a que chamava tecelão. O senhor tinha teares, um dia vou explicar-te o que é. Talvez até o melhor mesmo é visitar um museu onde haja um, para veres o que era e saberes como funcionava, ou ainda funciona, nalguns lugares do nosso país, embora poucos.

Como ia dizendo vinha o tecelão e levava os novelos. Falava com a mãe, sobre o prazo de entrega, porque a mãe tinha de estar em casa. Quando chegava trazia uma linda manta feita com as tiras que iam nos novelos, a mãe pagava algum dinheiro, não te posso dizer quanto, porque as crianças não percebem nada de dinheiro, não é?

- Vó a tua mãe era minha bisavó não era?

- Sim, era.

- Como te contava, a minha mãe punha a manta por cima da nossa cama, onde eu dormia com a minha irmã. Nessa altura havia pouco dinheiro para comprar camas e outras mobílias e por isso eu dormia com a minha irmã na mesma cama. Mas havia um problema. A manta era muito pesada e eu não conseguia dormir. Quase sempre a tirava de cima, embora depois ficasse com frio. Eram tempos difíceis, minha netinha. Não havia aquecedores, a não ser o lume, mas a lenha era pouca e tínhamos de a ir buscar longe aos pinhais. Era muito difícil para quem não tinha pinhais. Mas estou a desviar-me do assunto. Ficará para outra história sim?

- Sim avó.

- Agora vamos dormir em sossego, querida. Tem um soninho doce e brilhante como o teu olhar. A vó gosta muito de ti.
Até amanhã e outra história.