16/11/15

Preconceito



Confortavelmente instalado naquele cadeirão pelo qual já muitas Estações tinham passado, olhos fixos no horizonte, com voz doce e tranquila e um sorriso nos lábios pediu:
- Diz-me uma vez mais, de que cor são teus olhos Maria?
Ela sorrindo também, de um modo carinhoso e cúmplice respondeu:
- azuis como o céu, como o mar em dias de calmaria, onde as nuvens se olham ao espelho, Miguel. Como a água dos regatos que cantam de pedrinha em pedrinha, contentes pela sua caminhada, sabendo que um dia serão também azul mar, azul céu.
- Diz de novo que cor tem o sol.
- Amarelo, como um campo de espigas loiras ondulando suavemente na brisa da tarde. Que nos aquece a pele quando passa os lábios por ela. Como o fogo que dança nas labaredas de prazer.  Amarelo foi também o meu e teu cabelo.
- E o verde? Fala-me dele.
- Verde cor da esperança, dos campos no começo da Primavera, Natureza que acorda do sono do Inverno e se levanta. Transforma-se em prados verdejantes, autênticos tapetes cobertos de relva e milhares de outras plantas, salpicados de todas as cores, flores e botões, arco-íris que desceu à terra.
- E o vermelho?
- Cor do coração, do sangue, da pequena e frágil papoila à solta pelos campos enchendo o nosso olhar.
- Como é bom ver o mundo pela cor das tuas palavras, Maria!
Assim começava muitas vezes a conversa entre estes dois seres,  sentados no alpendre, de mão dada, no momento em que a noite estende belos mantos, para receber o sol no seu seio.
Uma vida inteira juntos. Recordavam o dia em que se conheceram no infantário. Ele discriminado pelas outras crianças por ser invisual, posto a um canto, ela como se fosse um anjo, sempre atenta aos mais necessitados.
Tudo começara com um dar a mão para mostrar a sala de refeições. Nunca mais aquela mão deixou de estar na dele...
Seguindo um chamamento interior para a música, ele tinha seguido o conservatório tornando-se um pianista famoso, ela sempre curiosa, e com vontade de ajudar o próximo tinha-se tornado numa investigadora. Queria descobrir porque tinha nascido Miguel invisual, de uma forma irreversível. Queria ainda entregar-se à missão de ajudar a criar meios que proporcionassem uma melhor qualidade de vida aos que vulgarmente eram chamados cegos.
Assim, encabeçou  a criação de aparelhos de ajuda para que os invisuais encontrassem o seu lugar na sociedade, nomeadamente no mercado de trabalho, permitindo-lhes a dignidade de pessoas sem o estigma da deficiência, considerados iguais em direitos e em deveres.
Hoje, volvidos muitos anos, podemos ver aquele casal sorrindo tranquilamente falando de uma vida, em que ambos venceram o enorme preconceito social.

Texto escrito para a Tertúlia do Et Quoi, cujo tema era: O Preconceito.

3 comentários:

Mar Arável disse...

Não há fronteiras para o vento que passa

Bjs

Parapeito disse...

Gostei muito deste teu conto, tão cheio de cor, tal como a tua alma minha amiga.
De mão dada, tudo fica mais fácil.
Abraço e brisas doces *****

Graça Pires disse...

Maravilhoso, amiga! A poesia das cores e do amor nestas palavras. Nem sempre é preciso ver. Mas é sempre preciso sentir.
Um beijo.