02/06/07

A árvore


Perdia-se na história dos tempos a idade da árvore, mas ali continuava assistindo ao aparecimento da carqueja e do tojo, olhando da sua altura, as flores de um amarelo intenso, misturadas com o rosa velho da urze. Aspirava deleitada aquele doce aroma que se espalhava ao redor saturando o ar de abelhas que zuniam recolhendo aqueles néctares.
Estava velha pensava, carcomido o seu interior, mas dando abrigo a um belo lagarto que outrora já fora verde mesclado de pequenos pontinhos amarelos e azuis, como se todo o corpo fosse coberto de esmeraldas e outras pedras preciosas.
Tinha assistido a muitas Primaveras, Verões e Outonos. Os Invernos passava-os bem aconchegado no fundo da sua toca, usufruindo do aconchego do tronco carcomido, onde tinha feito a sua casa.
Hoje o tom das pedras preciosas do seu corpo, tinha dado lugar a outro meio acastanhado.
Talvez por viver tantos anos na árvore, se tenha adaptado mais à cor desta, pensava a menina.
A contrastar com a idosa árvore e seu habitante, a menina era de tenra idade.
Um dia, passara descuidada saltitante pela mão da mãe, junto à árvore, e deu-se conta tanto da beleza e raridade visual desta, como do seu habitante. Ficou curiosa e voltou, agora sozinha, ao local.
Apesar da sua pouca idade, vivia num tempo em que as crianças não eram cobiçadas, roubadas nem agredidas por alguém exterior à família. (As agressões nesses anos vinham do próprio seio familiar). Podia, por isso, vir sempre que quisesse visitar a árvore e o seu habitante, de quem se foi tornando muito amiga.
Vinha nas manhãs de sol e ali se deixava ficar olhando o seu amigo lagarto, a velha árvore, o manto de flores multicolores com que o pinhal se vestia todas as primaveras, as videiras a rebentarem em viçosas folhas verdes clarinhas que se iam tornando mais escuras, até aparecerem aquelas sementinhas, muitas, muitas (a menina na altura achava que eram sementinhas) e que sabia se iriam transformar em belos e saborosos bagos de uva, que ela tanto gostava de provar.
A menina sabia, pois que acompanhava toda esta transformação, enquanto observava o seu amigo lagarto ao sol e iam falando os dois.
O lagarto contou-lhe dos outros meninos e meninas que por ali passavam e que lhe queriam fazer mal. Dos adultos que queriam cortar a sua árvore. De outras Primaveras em que o Sol tinha sido menos pródigo, recusando-se a brilhar, o que para ele era sempre motivo de não sair. Dos grandes estios que secavam as flores como se de um forno se tratasse. Da construção do lavadouro da aldeia, perto da sua toca, o que lhe valeu grandes sustos. A distinguir a flor do tojo, da carqueja e da urze. A saber que os medronhos não se podem comer em grande quantidade porque embebedam. Que o rio se transforma num pequeno regato no Verão. Que aquele castanheiro vizinho, iria dar uns frutos maravilhosos que se chamavam castanhas. Que quando os frutos estivessem bons para comer, cairiam do ouriço e nessa altura se aproximava o tempo da separação entre eles. Tanta coisa que a menina observava ouvindo deliciada, sempre.
E, assim nasceu e se desenvolveu uma grande amizade, entre a menina e o lagarto que tanto sabia, devido a já ter assistido à passagem de muitas estações do ano.
Quando chegava o Inverno era o tempo da espera e da saudade.
As estações foram-se sucedendo, até que chegou a altura da menina ir para a escola.
Lá foi feliz, podendo assim mitigar um pouco aquela saudade, e impressão de que o Inverno não acabava nunca.
Gostava muito da escola e de aprender coisas novas. Do mundo que se abria aos seus olhos.
O tempo corria mais depressa.
Chegada a Primavera, com o Sol a raiar, os passarinhos a cantar, as árvores a rebentarem, quando toda a natureza despertava, saindo daquela longa letargia, lá corria a menina para visitar o seu amigo e contar-lhe novidades da escola, dos amigos novos que tinha entretanto feito, das suas interrogações, dos seus anseios, das suas dúvidas, das suas angústias, e ali ficavam os dois esquecidos do tempo que à sua volta existia. Tempo que para eles era outro, de uma outra dimensão.
E assim se foram passando mais e mais estações, mais e mais invernos. A menina tornou-se mulher, trilhou caminhos diferentes, mas nunca se esqueceu do amigo, ali voltando todos os verões e tendo sempre a alegria do reencontro.
Até que um dia...
Os homens cortaram a árvore e a menina, agora mulher, chorou.
Então ouviu uma vozinha que ela conhecia muito bem e que lhe perguntou:
─ Porque choras, amiga?
Ela levantou a cabeça e apressou-se logo a secar as lágrimas ao ver o seu amigo são e salvo. Um sorriso iluminou todo o seu rosto.
Uma imensa alegria do tamanho do mar que liga oceanos brotou do seu peito. Abraçou o amigo e assim ficaram saboreando o prazer das amizades verdadeiras...
foto: gentilmente composta por mão amiga
Nota: Este conto participa na 6.ª edição do Canto de Contos.
Os participantes podem ser encontrados no blog da Beatriz

26 comentários:

Anónimo disse...

Dona moça e suas palavras doces...
Ficou Ótimo moça...
Realmente lindo, amizade que resiste ao tempo e nos ensina que as coisas simples da vida são as mais prazerosas...

Beijos e ótimo domingo.
:*

nqdn disse...

Belo, sensivel e muito bem escrito!

Lamento a árvore, mas uma vida escapou para perpetuar a amizade.
Porque a amizade é inseparável da VIDA...

Um beijo.
Luis

Teresa Durães disse...

das aprendizagens antigas (pouco feitas nestes dias) onde a linha de condução é feita pela amizade

boa tarde

Daniel Aladiah disse...

As árvores também se abatem...
Um beijo
daniel

Maite disse...

Cara TB

Pela sua descrição até consegui sentir o verde do lagarto (velho?!), os lagartos com 150 anos ainda são novos :) e aposto que este ainda durou muito mais porque esperava a sua amiga. As amizades fazem sempre milagres :)

Resto de bom domingo para si

Beatriz disse...

:) os lugares comuns, as arvores e os lagartos da nossa infancia. um retrato prazenteiro da amizade que nos faz e ve crescer.....

abraço e obrigada por participares

Cláudia disse...

Lindo,ternurento e cheio de amor...

Isa e Luis disse...

Olá,

Bela historia, repleta de sentimentos e emoções.

Gostei muito!

O meu abraço amigo...em silêncio.

Isa

Brites disse...

Este conto fez-me voltar a minha infância. Aos lugares distantes da minha mente e que fazem parte da minha essência. Princípios como a Amizade, Preserverança, Esperança e Amor, saiem daqui subliminados pelo doce prazer da leitura e da escrita. Da tua escrita!
Um maravilhoso conto com grande significado.
Beijinhos!

mitro disse...

Se não fosse cá por coisas diria que eu era o lagarto!

Plum disse...

Simplesmente fantástici!***

Francisco Sobreira disse...

MInha Amiga,
Que bom você, que se dedica à poesia, vez, por outra, experimentar a prosa , para nos deliciar com essa bela fábula que trata de uma grande amizade. Um beijo.

Jorge P. Guedes disse...

Muito bonito este conto!

Espero que muita gente o leia.

Parabéns e um abraço.

António disse...

Querida Teresa!
Uma bonita história ao jeito de fábula que aproveitas para fazer uma maravilhosa descrição de uma natureza ainda viva.
Muito linda!

Beijinhos

Alexandre Lucio Fernandes disse...

Nossa, que texto sensivel TB e muito lindo.

Tem uma intensidade sem igual.

o final foi surpreendente, mas adorável.


amizades verdadeiras...

beijos

joão marinheiro disse...

Tu és fantástica sabes. És!
Este conto/historia é uma viagem pela memória dos lugares da meninice, lembrei o dia que me fartei de comer medronhos na arvore...ou mais recentemente quando os fui colher pequeninos, junto à tua casa das memórias. Porque será que me lembrei logo do sítio, da envolvencia calma do lugar.
Só verdadeiramente as amizades puras se aprimoram na lonjura do tempo, ficando com aquele sabor de um bom velho Porto que se saboreia em ocasiões especiais.
Abraço grande com saudade.

CNS disse...

Um texto ternurento, que me levou de volta ao tempo dás fábulas...

:)

Nilson Barcelli disse...

Parabéns por este conto.
Muito ao teu estilo, não sei se vais ganhar o evento, mas ele tem todos os condimentos para ser muito apreciado.
Bom fim-de-semana, beijinhos.

José Pires F. disse...

Excelente este era uma vez… Conto, história, fábula, seja o que for… foi com a alegria dos putos que o li.
Já pensaste em escrever histórias para os putos?

Enorme abraço.

PS: Infelizmente não participei devido há falta de inspiração, ainda tentei, mas nada saiu que merecesse ser publicado e, quando assim é, mais vale ficar quieto.
Ando agora, vagarosamente claro, a ler os contos.

José Pires F. disse...

Depois de ler o que escrevi, fiquei a pensar que poderia ser mal interpretado por causa das histórias dos putos, assim, esclareço, que não acho nada fácil escrever boas histórias para a criançada, e digo-o com a experiência de alguém que já tentou e não conseguiu.

Anónimo disse...

mera intrusa mas li com prazer este texto, nao li mais devido a falta de tempo mas retomarei certamente a leitura...

Archeogamer disse...

beijinhos teresa, o conto é bem envolvente, tens que publicar mais uns quantos. :)

Anónimo disse...

Ah! eu aprecio demais essas amizades que se formam entre um serzinho tenro, como a menina do conto, e a natureza...São elos poderosos e sábios, são contatos sempre gratificantes, porque ensinam experiências de vida...
E suas linhas de descrições são belíssimas!
Gostei muito do conto.
E me envolvi em emoção!
Beijos de ternura para você.
Dora

agua_quente disse...

Lindo, pleno de ternura e de entendimento da natureza e dos seus ritmos.
Beijos

pessoa disse...

Fantástico.
Já tinha saudades de um conto destes. Reconforta-me...
Parabéns
Beijo

foryou disse...

Muito bonito este texto.
E como as árvores morrem de pé, de pé ficarão sempre as amizades.